Por Lucas Mastellaro Baruzzi*, Jeferson Manhaes** e Thiago Munhoz Agostinho*** – Uma das ações importantes do Pacto Ecológico Europeu ou European Green Deal, apresentada em maio deste ano pela Comissão Europeia, é a “From Farm to Fork Strategy”, oficialmente traduzida para o português como “Estratégia Do Prado ao Prato” e, nesse artigo, denominada Estratégia da Fazenda ao Prato.
Em síntese, o Pacto Ecológico Europeu é um conjunto de incentivos e obrigações que pretendem, num curto prazo (até 2024) contribuir para que a União Europeia avance no alcance da meta de neutralidade de emissões de carbono até 2050. Trata-se de um pacto geoestratégico, que permitirá à União Europeia exercer uma espécie de “pré-sanção ambiental”, impondo políticas compatíveis às do Bloco como pré-requisito para as relações comerciais com outros países.
A Estratégia da Fazenda ao Prato é considerada uma das principais políticas setoriais do Pacto Ecológico para alcance das metas climáticas. Seu objetivo é assegurar que toda a cadeia do alimento (da sua produção, transporte e distribuição ao consumo) tenha um impacto neutro ou positivo no clima e no meio ambiente. Em termos práticos, os alimentos produzidos terão que ter uma “pegada ecológica” no uso dos recursos naturais – tais como solo, água, área agricultável, ar etc. -, contribuindo para a recuperação ambiental e para o enfrentamento das mudanças climáticas.
Ou seja, a atividade agropecuária deverá estar associada a um conjunto de ações voltadas a promover um impacto positivo ou neutro nos recursos naturais – como, por exemplo, não desmatar, recuperar áreas degradadas, reduzir emissões de gases de efeito estufa, reduzir o uso de defensivos agrícolas, evitar o excesso de nutrientes, implementar ações para remoção de CO2 da atmosfera, reverter a perda de biodiversidade e das florestas.
Para que a Estratégia Da Fazenda ao Prato atinja seus objetivos, um conjunto de mais de 20 iniciativas serão lançadas até 2024, voltadas para a implementação de transformações amplas dos Estados membros da União Europeia e com efeitos imediatos nos países exportadores ao mercado Europeu. Dentre estas, a Estratégia prevê, por exemplo, um sistema de verificação de origem dos produtos, o que pode facilitar o embargo daqueles provenientes de áreas de desmatamento. A Estratégia sinaliza ainda para a criação de “um novo modelo de negócio”, referente à remoção de carbono da atmosfera por produtores rurais, remunerando-os por este serviço prestado – por exemplo, a partir da recuperação de solos e reflorestamento. Cabe ainda mencionar a iniciativa de criação de uma lei específica sobre dados das propriedades rurais, que pretende trazer transparência às práticas sustentáveis adotadas desde a produção. Propõe-se também uma profunda alteração sobre as informações em embalagens e rótulos dos produtos, para empoderar a decisão do consumidor também no que tange a aspectos sobre origem, mudanças climáticas, meio ambiente e responsabilidade social.
Como se nota, a Estratégia é abrangente, e estará sujeita a Diretivas específicas a serem expedidas pela Comissão Europeia ou aprovadas pelo Parlamento Europeu, voltadas a regulamentar, em pormenores, cada uma das iniciativas. Até aqui, a Estratégia Da Fazenda ao Prato foi bem recebida em sua fase de consulta pública – ainda que como um quadro-geral do que se almeja -, tendo recebido apoio de empresas do setor de alimentos, embalagens, química, saúde animal (tais como Bayer, Basf, Pepsico e Tetra Pak) e de associações e confederações de produtores europeus. Ao anunciar a Estratégia e dar publicidade às suas metas, a UE sinaliza as mudanças normativas que virão, permitindo que os setores econômicos se antecipem e se adaptem.
A UE declarou que fará uso de seu peso econômico e geopolítico para promover a diplomacia do “Pacto Ecológico” em fóruns multilaterais políticos, econômicos e ambientais e que irá colocá-lo como prerrogativa para a assinatura de acordos comerciais bilaterais e multilaterais. Além disso, todos os produtos, sobretudo químicos e agrícolas, introduzidos no mercado europeu “devem cumprir integralmente a regulamentação e as normas pertinentes da UE”, inclusive para “reduzir a contribuição da UE no desflorestamento e degradação […] a partir de medidas para evitar ou minimizar a colocação de produtos, no mercado europeu, associados ao desflorestamento.”
Com o anúncio da Estratégia Da Fazenda ao Prato em maio de 2020, já é notada uma mobilização da cadeia do agronegócio europeu para adequarem-se às iniciativas anunciadas e às Diretivas que virão, visando oferecer produtos que serão indispensáveis para o cumprimento das novas regras, para o aumento da produtividade e para mitigação do impacto aos recursos naturais. A título de exemplo, enzimas que reduzem emissões de gases de efeito estufa provenientes do processo digestivo do gado e serviços de tecnologia para aplicação eficiente de nutrientes no solo são um dos muitos produtos agrícolas que estão sendo desenvolvidos.
Tais diretivas terão também impacto na produção estrangeira, principalmente brasileira. O Brasil, com sua atual imagem na Europa fortemente associada ao desmatamento, deverá ser objeto de minucioso escrutínio dos produtores locais (já tradicionalmente refratários a aberturas do mercado europeu), e dos próprios consumidores europeus, além de enfrentar dificuldades frente a uma legislação socioambiental mais severa (que, na prática, tentará impor barreiras comerciais). Na França, grupos de distribuição como Carrefour e Casino têm sido pressionados para que adotem sistemas transparentes de rastreabilidade dos produtos que vendem.
No que tange às características gerais do setor agropecuário brasileiro, é correto dizer que um sistema coeso para medir, reportar e verificar os impactos da atividade será cada vez mais determinante para a prosperidade do negócio e para valorização das empresas e produtores que pretendem acessar o mercado europeu.
Nesse sentido, os participantes da cadeia agropecuária terão que aprimorar seus mecanismos de controle e mensuração, adicionar transparência às suas práticas e estarem sujeitos à verificações periódicas de governos, compradores, consumidores e sociedade organizada. Para assegurar que o produto atenda aos requisitos de desempenho socioambiental, por exemplo, será indispensável a rastreabilidade do produto desde seus fornecedores; a adoção de certificações (por exemplo de manejo florestal, a Forest Stewardship Council – FSC, e a de agricultura sustentável, a Rainforest Alliance Certificate); a condução de due diligences para identificar práticas non-compliance; e uma avaliação de impacto sobre o uso dos recursos naturais visando progressiva melhoria dos indicadores. Ilustrativo dessa necessidade foi o estudo recém publicado, na revista Science, de que aproximadamente 20% das exportações brasileiras de proteína e soja são provenientes de áreas desmatadas ilegalmente.
A adaptação aos novos padrões de desempenho socioambiental, definidos unilateralmente pela União Europeia, poderá ser aproveitada por meio de uma “onda verde” de oportunidades no Brasil, alavancando pesquisa e desenvolvimento. Não se pode perder de vista que a União Europeia é a primeira origem de investimentos estrangeiros diretos no Brasil. Com 450 milhões de habitantes, o bloco europeu possui capacidade de consumo inédito no mundo, ficando atrás somente dos EUA e à frente da China em termos de PIB, com 18,2 trilhões de dólares. O Brasil, 9o maior exportador para a Europa, viu suas exportações aumentarem em 17% em 2020, ao longo dos últimos 14 anos, e detém um superávit de quase 5 bilhões de dólares nas relações comerciais com o grupo.
Governo e setor privado podem, por exemplo, liderar cadeias estratégicas, como a chamada “descarbonização da agricultura”. Isso porque o Brasil é o 2o maior emissor de gases de efeito estufa do mundo para atividades provenientes da agropecuária, emissões principalmente do processo digestivo do gado, do uso de fertilizantes nitrogenados e do manejo de solos agrícolas. Já com relação a mudanças no uso da terra (desmatamento, degradação dos solos), o Brasil é o 3o maior emissor, notadamente pelo desmatamento na Amazônia e no Cerrado.
A partir das Diretivas que a União Europeia pretende impor, as oportunidades serão das mais variadas possíveis – por exemplo, para desenvolvimento de uma alimentação animal que substitua a soja proveniente de áreas desmatadas (a UE projeta até mesmo financiamentos dedicados à pesquisas para uso de insetos na alimentação animal); e o desenvolvimento de enzimas que reduzam as emissões de gás metano pelo processo digestivo do gado. Outro campo promissor é o da agricultura de precisão, podendo o Brasil ser um celeiro global das chamadas agritechs (ou startups do agro). Diz a Estratégia Da Fazenda ao Prato que a meta de redução do desperdício (ou excesso) de nutrientes será de pelo menos 20% até 2030, criando uma demanda para serviços de tecnologia no campo.
Para essa transição necessária na agricultura, a Estratégia da Fazenda ao Pasto anunciou um apoio financeiro por meio de um fundo específico. O Horizon Europe, o novo programa de incentivo ao desenvolvimento de pesquisa e inovação da União Europeia, trará um aporte de 100 bilhões de euros (aproximadamente R$ 650 bilhões de reais), dividido em 5 missões, das quais 4 estão diretamente relacionadas às mudanças climáticas. Uma delas é de interesse particular ao Brasil, pois pretende financiar pesquisas e inovações com países parceiros para preservar o uso do solo para a produção alimentícia – um recurso natural essencial para a produção agrícola. A Europa já é uma referência no setor, pois os Países Baixos, país-membro do Bloco, mesmo 200 vezes menor que o Brasil, é o segundo país exportador agrícola do mundo, graças a tecnologias que otimizam a utilização do seu solo, atrás apenas dos Estados Unidos.
As oportunidades são sedutoras, mas cabe alertar para o risco de um aprofundamento das desigualdades no campo e para o risco de pequenos agricultores não terem acesso aos recursos, tecnologias e boas práticas necessárias para participarem dessa nova cadeia do alimento. Um protagonismo maior do Estado é essencial nesse aspecto.
Olhando para a resposta brasileira a essa nova configuração geopolítica dos mercados, vemos pouco ou quase nenhum entusiasmo por movimentos que possam tornar o País protagonista de boas práticas sustentáveis na área ambiental. Está claro que a reação necessária deve vir também do Executivo e do Legislativo.
Ressalvadas as reações positivas que começam a surgir em alguns setores econômicos (preocupados com a depreciação de ativos e o risco de falta de acesso a mercados) e a contribuição de entidades organizadas, universidades e um grupo de empresas de vanguarda, falta protagonismo por parte de autoridades e entidades públicas para liderarem, internamente, uma transformação na cadeia agropecuária e, externamente, para reposicionarem o Brasil com legitimidade para influir em negociações internacionais (por exemplo, no acordo comercial UE-Mercosul).
Muito embora exista um esperançoso conjunto de iniciativas legislativas sobre o tema, nenhum dos Projetos de Lei atualmente em curso possuem mecanismos sólidos, de aplicação prática imediata, que possam dar largada a uma verdadeira corrida verde, pró-clima, brasileira. Pelo contrário, dependem ainda de muita atividade legislativa, intensos debates e de regulamentação para se tornarem efetivas normas de controle, de desenvolvimento de políticas públicas concretas ou de concessão de benefícios e estímulos aos setores produtivos. Estamos, de fato, longe do tema.
Diante desse quadro, lideranças da Câmara dos Deputados passaram, recentemente, a articular uma resposta legislativa a partir da priorização de um conjunto de projetos de lei. De autoria do Deputado Alessandro Molon, o PL 3961/2020, por exemplo, declara o estado de emergência climática, estabelecendo como meta para a neutralização das emissões de gases de efeito estufa no Brasil o ano de 2050 (o que corresponderia à meta do Acordo de Paris para os países desenvolvidos). Já o PL 7578/2017, do Deputado Zé Silva, busca “monetizar” a preservação de áreas verdes através da emissão de títulos semelhantes aos créditos de carbono – apesar de bem-vinda, a proposta não tem sinergia com o funcionamento do mercado internacional de carbono, limitando o potencial da iniciativa. Paralelamente, outros Projetos de Lei visam o recrudescimento das penas para os crimes ambientais, mas vêm acompanhados de certo ceticismo, tendo em vista a atual incapacidade administrativa de fiscalizar e punir práticas ilegais (são eles, o PL n.º 3337/2019, do Deputado Rodrigo Agostinho, e o PL n.º 4689/2019, do Deputado Zé Vitor).
O Brasil também foi alvo de recentes reivindicações, principalmente vindas de grandes empresas, para implementação de políticas de proteção ao bioma amazônico e anúncio de ações voluntárias em prol de uma agenda verde (por exemplo, as lançadas em conjunto pelo Bradesco, Itaú e Santander). Esse fato fez com que o Governo prorrogasse a operação Verde Brasil, cujas ações são coordenadas diretamente pelo vice-presidente Hamilton Mourão. Outra medida governamental, dialogada pelo próprio presidente Jair Bolsonaro, em 2019, através do Plano Plurianual, foi o compromisso de nos próximos 3 anos reduzir em 90% o desmatamento e os incêndios ilegais em todos os nossos biomas.
Contudo, são iniciativas que não estão surtindo efeito, conforme dados amplamente divulgados sobre o desmatamento e focos de queimadas. Ao nosso ver, iniciativas somente de fiscalização e punição não estimulam, como deveriam, as boas práticas ambientais e o avanço da pesquisa e desenvolvimento.
Temos visto, no mercado financeiro, uma tendência de alta na procura por fundos verdes e de papéis de empresas que incorporam em sua governança a preocupação socioambiental. Embora ainda incipiente, a expectativa é de que gestoras e instituições financeiras passem a incluir mais opções na carteira e ofereçam alternativas desse segmento para investidores na medida em que as discussões pró-clima passem a ser priorizadas. Em um cenário de médio a longo prazo e de progressiva implementação de boas práticas ambientais, sociais e de governança (a chamada ESG), quem sabe as green chips de hoje não serão as blue chips de amanhã.
A “euro dependência” na implementação de uma agenda pró-clima e pró-ambiente, associada ao comportamento do Brasil em não liderar um movimento internacional de valorização das boas práticas ambientais, custará ao País perda de oportunidades de desenvolvimento interno e um longo processo de reversão reputacional. Além de poder trazer sérios impactos às exportações brasileiras por meio de bloqueios comerciais. Internamente, a agenda precisa ganhar corpo, inclusive para que pleitos legítimos do Brasil sejam colocados nos fóruns de negociação para definição de regras de transição, períodos de adaptação e formas de cooperação para pesquisa e desenvolvimento.
(*) Lucas Mastellaro Baruzzi é advogado do escritório BFAP Advogados, cientista político, mestrando em Políticas Públicas no King’s College London, mestre em Direito pela USP, advogado (PUC-SP) e cientista político (USP) e atua com políticas públicas e relações governamentais
(**) Jeferson Manhaes é mestre em Relações Internacionais (Sorbonne), mestrando em Eco-Inovação (Paris-Saclay), especialista na intersecção entre Inovação e Sustentabilidade e seu impacto em policy, com longa experiência internacional, atua na co-criação de soluções que impactam tecnologia e meio-ambiente
(***) Thiago Munhoz Agostinho é advogado do BCBO – Buccioli Braz Oliveira Advogados Associados, especialista em Direito Tributário (FDUSP) e atua em temas regulatórios e possui grande experiência em serviços prestados a empresas, principalmente italianas, de grande, médio e pequeno porte
Excelente texto, fazia um bom tempo que não lia um texto tão bom e atual, com colocações muito a frente sobre o que se pensa em agronegócio contemporâneo mundial. Parabéns aos editores!