Agricultura

Inverno: o poder das gramíneas

É partir delas que se inicia o processo de recuperação do solo para a agricultura – entre elas estão todos os cereais de inverno como o trigo. Mas, ao que tudo indica, o rei mesmo é o milho.

“DE TODAS ESSAS ESPÉCIES DE GRAMÍNEAS, EU DIRIA QUE O REI DELAS É O MILHO – POR QUÊ? – PORQUE O MILHO LEVARIA EM TORNO DE DOIS ANOS PARA APODRECER, E NÃO SOMENTE UM ANO OU UM ANO E MEIO, COMO LEVARIA UM TRIGO OU UMA CEVADA. O MILHO É UMA PLANTA MUITO MAIS LIGNIFICADA (PALHA MAIS DURA) E, ASSIM, MAIS DIFÍCIL DE SER DECOMPOSTA. A RELAÇÃO C:N PODE PASSAR DE 100:1”, RESSALTA JOSÉ ELOIR DENARDIN, PESQUISADOR DA EMBRAPA TRIGO.

NÃO HÁ NENHUMA OUTRA FAMÍLIA DE VEGETAIS MAIS APTA À CONSTRUÇÃO DO SOLO DO QUE AS GRAMÍNEAS – AÍ, INCLUSOS, AS PASTAGENS E TODOS OS CEREAIS DE INVERNO, COMO O TRIGO, O TRITICALE, A AVEIA, O CENTEIO, A CEVADA, E O MILHO, QUE É, ENTRE TODOS, O QUE MELHOR PODE CONSTRUIR ESSA FÍSICA DO SOLO.

“Aprendemos que fertilidade é química, mas, na realidade, um solo fértil tem de ter também toda uma estrutura física, e quem a constrói é a atividade biológica do solo”, esclarece Denardin.

Os cereais de inverno têm esse poder de manter o solo estruturado por terem raízes do tipo cabeleira que penetram nos microporos da terra, e lá alimentam toda a cadeia dos micro-organismos.

“Meu foco tem de estar na soja, porque ela tem mercado, liquidez, tem tudo que você imaginar de mercado, mas o que ela não tem é justamente a manutenção da fábrica [o solo]”, explica Denardin.

Imagine o processo de fabricação de um tijolo – é de fato um extrato de solo argiloso muito bem compactado. Se pegá-lo e aquecê-lo na fornalha, ao final, o resultado que se tem é um bloco bem sólido e rígido. Se pegar esse mesmo tijolo, mergulhá-lo num recipiente cheio de água com todos os ingredientes necessários para a fertilidade do solo, e colocar isso, agora, num forno de cozinha, a uma temperatura média acima de 100°C, no final de um dado momento, a água se evapora toda e os nutrientes ficam todos dentro do tijolo. Ao esmigalhar esse bloco de argila em pó, você pode então fazer uma análise laboratorial desse material que comprovará a fertilidade dele, o qual se mostrará apto à agricultura.

Essa analogia ao tijolo serve adequadamente para exemplificar o estado em que se encontra grande parte dos solos agrícolas do País. Como um tijolo, ele pode ser rico, contudo uma riqueza que é inacessível às raízes das plantas pelo fato de não poderem penetrar nesse bloco rígido, de acordo com o especialista em solos, José Eloir Denardin, pesquisador da Embrapa Trigo, localizada em Passo Fundo (RS). Foi justamente ele quem fez essa analogia, para explicar o seguinte ponto – fertilidade do solo não quer dizer apenas um processo químico, mas sim uma integração entre processos biológicos, físicos e químicos que ocorrem debaixo da terra – e são úteis à qualidade da área a ser cultivada. “Aprendemos que fertilidade é química, mas, na realidade, um solo fértil tem de ter também toda uma estrutura física, e quem a constrói é a atividade biológica do solo”, esclarece Denardin.

A física é o oposto do que é o aspecto de tijolo. Ela faz a estrutura da terra ser mais porosa, descompactada, o que permite maior absorção de água e o acesso das raízes aos nutrientes necessários ao desenvolvimento das plantas. E não há nenhuma outra família de vegetais mais apta à construção do solo do que as gramíneas – aí, inclusos, as pastagens e todos os cereais de inverno, como o trigo, o triticale, a aveia, o centeio, a cevada, e o milho, que é, entre todos, o que melhor pode construir essa física do solo.

Com a entrada da estação de inverno agrícola no País, essas são as opções para a rotação da lavoura por garantir rendimentos e, ainda, um solo adequado para o desenvolvimento da cultura de verão.

Descompactando o tijolo

O primeiro passo para ‘quebrar o gelo’ se dá pela atividade biológica no solo – e isso ocorre quanto há alimento aos micro-organismos presentes nas primeiras camadas desse extrato de terra (estes podem ser compreendidos como a biota do solo). Em geral, todas as lavouras dão garantias de alimento a essa classe de seres vivos, entretanto o que vai variar são três aspectos – o qualitativo, o quantitativo e a frequência. “Para que a atividade biológica possa construir essa física, ela deve ter acesso a um alimento em qualidade, quantidade e frequência adequadas”.

Qualidade se refere às opções mais ‘palatáveis’ ou que serão devoradas com maior rapidez pela classe dos micro-organismos do solo. Isso significa que este alimento – palhas e raízes das plantas – possui uma relação carbono-nitrogênio (C:N) muito baixa na sua constituição de tecidos, ou seja, tem muito pouco carbono para a quantidade de nitrogênio. Normalmente, são culturas que possuem uma relação de 14:1, por exemplo (catorze partes de carbono para cada uma de nitrogênio). Dentro desse grupo, se encontram a família das leguminosas, como a soja e o feijão, ou das brássicas, com a canola ou o nabo forrageiro. “O corpo dos micro-organismos também tem essa mesma relação de C:N”, explica Denardin, “então eles adoram esse tipo de tecido para decompor. A palha da soja, após a colheita, em questão de, no máximo, três meses, está totalmente desmineralizada, decomposta, apodrecida, atacada e consumida pelos micro-organismos. O mesmo ocorre com o feijão, com a canola, e com o nabo forrageiro, que é mais rápido ainda – em menos de três meses ele já está totalmente decomposto”.

No caso das gramíneas, essa relação C:N é bem mais alta. Chega-se em torno de 70:1, 80:1 ou mesmo 90:1. Segundo Denardin, isso significa que os micro-organismos não vão poder consumir esse material de uma forma muito rápida, em função dessa pouca quantidade de nitrogênio em relação à de carbono presente na planta.

“De todas essas espécies de gramíneas, eu diria que o rei delas é o milho – por quê? – porque o milho levaria em torno de dois anos para apodrecer, e não somente um ano ou um ano e meio, como levaria um trigo ou uma cevada. O milho é uma planta muito mais lignificada (palha mais dura) e, assim, mais difícil de ser decomposta. A relação C:N pode passar de 100:1”, ressalta o pesquisador.

Oferta de alimento constante

Diante da ‘qualidade’ da lavoura a se instalar na área, resta-se saber a quantidade e frequência adequadas que irão suprir a biota do solo. Por exemplo, se for instalada uma leguminosa em grande quantidade isso não será consumido em três meses. “Quando se tem uma qualidade muito boa de palha é necessário colocar uma quantidade muito alta. Já, quando se tem uma qualidade ruim, vamos dizer, para o micro-organismo, no caso das gramíneas, então você pode por pouco, pois eles vão levar mais tempo para mineralizar tudo aquilo”, atesta o pesquisador.

O ponto crucial é entender que, a partir dessa oferta de alimento, a atividade biológica tem de ser mantida durante todo o ano agrícola. “Não se pode dar comida hoje e daqui a três meses não oferecer mais. Se acontecer isso (…) os micro-organismos que estavam para decompor essa palha virgem morrem e a segunda camada de micro-organismos (responsável por decompor o que aquele primeiro grupo já havia decomposto) passa a consumir o que o solo tem de reserva. Tal quadro leva a uma queda significativa de matéria orgânica no solo”. Esse é o princípio do processo de degradação do solo, no qual a área começa a perder os nutrientes antes depositados na terra.

Com objetivo de se manter a biota do solo ativa, após a safra de soja, por exemplo, imediatamente pode se instalar uma nova lavoura para produzir mais material orgânico, como o trigo, o centeio, o triticale ou a aveia. “Pode ser qualquer cultura, até mesmo a canola, mas esta só terá mais uns três meses de alimento. Soja e canola só alimentariam a biota do solo durante seis meses – a metade do ano. E a outra metade, como ficaria? Por isso, quando se coloca uma leguminosa, como a soja, e depois uma gramínea, há uma garantia de, no mínimo, um ano e três meses de atividade biológica”, certifica Denardin.

A força das raízes

As gramíneas, em especial, os cereais de inverno, têm esse poder de manter o solo estruturado por terem raízes do tipo cabeleira (faciculada) que penetram nos microporos da terra, e lá dentro alimentam toda a cadeia dos micro-organismos. De acordo com Denardin, a soja possui praticamente só uma raiz (pivotante) que penetra verticalmente no solo, ao passo que o trigo tem muitas raízes. Outro detalhe em relação às gramíneas (trigo, centeio, cevada, triticale e milho) é que elas renovam as raízes diariamente – isso quer dizer que essa família de vegetais alimenta a biota do solo ainda viva. Já as leguminosas só vão alimentar os micro-organismos quanto estiverem mortas.

O tempo necessário para a recuperação do solo dependerá da planta, da qualidade de palha e raízes. O ideal seria fazer um consórcio com uma planta perene, como uma pastagem, por exemplo. “Essa seria uma máquina para construção rápida de solo. (…) Estamos testando isso num ensaio aqui em Passo Fundo, no qual colocamos uma pastagem perene, que vai ficar um, dois e três anos – e aí vamos ver o quanto e qual é o grau de recuperação a cada ano. De antemão, já posso assegurar que ao intensificar uma rotação de culturas, sair um pouco do trigo e soja, ou soja e o cereal de inverno guaxo [sem semeadura] que nós temos hoje, e entrar na rotação com milho, aveia semeada, uma pastagem de inverno, uma boa massa de aveia preta, ou centeio ou mesmo azevém cultivado, percebemos, já no segundo ano, que o solo melhorou. Isso se sente debaixo dos pés, ao caminhar pela lavoura – ele fica como uma esponja”, descreve.

A quantidade certa

Dados de pesquisas da Universidade Estadual de Ponta Grossa e da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre, apontam qual a quantidade de palha e raízes necessária a ser adicionada por ano agrícola para manter o solo fértil e a atividade biológica ativa. Nesse sentido, estima-se uma média de 10 toneladas (t) de palha por hectare por ano – ou de oito a 12 t de palha e raiz por ha/ano. “Vamos fazer uma conta rápida (…), digamos que a soja garanta três t de matéria orgânica. Se deixar nascer o azevém no inverno, aí serão mais duas t – a soma até agora é de cinco t – isso é exatamente na metade do que o solo precisaria. Ao colocar a soja que produz as três t, com uma aveia cultivada, que produz de quatro t a cinco t, aí já são oito t, por exemplo. Se introduzir o milho depois da soja, na próxima safra, ele vai produzir facilmente entre seis t e oito t, ou mesmo 10 t de grãos, isso equivale a mesma quantidade de palha deixada pelo cereal. Dessa forma, a soma poderá chegar de 13 t a 14 t”.

A partir desse estudo, a aplicação da rotação de culturas agrega ainda mais potencial à agricultura, e o milho destaca-se como o rei dessa técnica. “O importante disso tudo é lembrar que a soja é a nossa riqueza, as outras culturas aparecem para manter essa riqueza. Meu foco tem de estar na soja, porque ela tem mercado, liquidez, tem tudo que você imaginar de mercado, mas o que ela não tem é justamente a manutenção da fábrica [o solo]. E por isso a rotação é fundamental para manter essa minha riqueza que é a soja”, conclui Denardin.

O caso do Cerrado brasileiro

Um exemplo de transformação dos solos ocorreu na porção de terras compreendida por Brasil Central, na qual se encontra a região de Cerrado. Segundo Denardin, a agricultura iniciou o cultivo da soja – e somente a soja. Depois da colheita, o resto do ano inteiro era pousio (descanso da terra). “Em pouco tempo, essa prática levou a região a um processo de degradação violento”, conta. “Aí, então foi resolvido plantar milheto, o capim italiano, depois da soja. Então, colhia-se a soja, e logo imediatamente se plantava o milheto – que morria com a seca, no período de junho a julho, mas deixava lá uma palha para a biota do solo. Mais tarde, percebeu-se que após a colheita da soja, plantava-se o milheto que morria posteriormente, e antes de começar as chuvas, no final de agosto e início de setembro, se plantasse novamente o milheto, ao chegar a hora da semeadura da soja, entre 15 e 20 de outubro, o milheto já tinha quase um metro de altura, Aí matava-se isso, o que gerava um excelente alimento para a biota do solo”.

Mas bastou a queda do preço da soja para não ter mais viabilidade nenhuma, pelo fato de somente ela sustentar a produção, até então. Posteriormente, em meados de 2001, surgiu um sistema chamado de Santa Fé – plantio de soja precoce ou super precoce, milho e braquiária. “Planta-se a soja em outubro, colhe-se em fevereiro. Em fevereiro, semeia-se o milho, que é o famoso milho safrinha do Brasil Central, que será colhido em maio, e, no meio do milho já se semeia a braquiária. Então, surgiu um sistema em que você colhe soja em fevereiro, planta o milho consorciado com braquiária (…) os dois vão crescer juntos, e nenhum vai atrapalhar outro. De maio em diante, você tira o milho e fica a braquiária viva. Quando chega a época de outubro, você mata a braquiária com herbicida para plantar a soja… Então você tem planta viva, 365 dias por ano, no Brasil Central, atualmente”, pontua.

Como efeito, o Cerrado se potencializou agronomicamente. A produtividade está em 70, 80 e até 100 sacas de soja por hectare cultivado. “O mais importante de tudo, é que você planta três safras, ou planta duas safras, que no caso é a soja e o milho consorciado com a braquiária, e colhe três safras, porque você colhe o milho, colhe a soja, e, com a braquiária, você colhe carne, a partir do boi”.

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