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ALCA – subsídios americanos são os maiores entraves

Os Estados Unidos insistem em manter a América Latina sob sua influência. Atacam nas mais diversas frentes, aplicando rígido cabresto sobre os rumos, e até vocações, dos diversos países que compõem a comunidade latino-americana. Como uma avalanche, torrentes de imposições são vomitadas sobre as nações. Os governos são convocados ao ‘debate’ e acossados por ações diplomáticas e militares. Intimidados, acabam assinando ‘acordos’ que perpetuam a tutela sobre o quintal.

Uma dessas frentes é a Alca – Área de Livre Comércio das Américas, que, diga-se de passagem, é bem mais ampla que o divulgado e não se restringe apenas ao comércio. O tratado não leva em conta as diferentes economias existentes na região e impõem, como apontam alguns analistas, o modelo norte americano como padrão. Caso essas desigualdades continuem sendo desconsideradas, a vigência do pacto vai consolidar a hegemonia dos Estados Unidos no continente e, de quebra, provocar uma exclusão social sem precedentes.

Consciente de que governantes e elites são dotados de vértebras excessivamente flexíveis, a população localiza abaixo do Rio Grande (que separa o México do EUA), principalmente médios, pequenos e agricultores familiares se mobilizam contra a adesão incondicional, solicitando maiores esclarecimentos sobre o sistema a ser posto em funcionamento r reivindica a realização de um plebiscito até dezembro do próximo ano.

A previsão para o início da implantação da Alca, em 2005, tem suscitado discussões calorosas e acirrados debates sobre os reflexos que as medidas em prática acarretarão aos mais variados setores de atividades. Particularmente, com relação à agricultura, a questão envolvendo subsídios concedidos pelos Estados Unidos está entre as mais polêmicas. Tanto é que vários governos latinos – americanos, cedendo à pressão popular, têm promovido encontros nos quais são manifestados dúvidas, temores, restrições e sugestões à melhor forma de defesa e adequação ao novo modelo proposto.

Alca: mais perguntas do que respostas.

Uma dessas reuniões patrocinadas pelo governo brasileiro e, coordenadoria pelo Itamaraty, foi realizada, no final de junho último, em São Paulo, no Memorial da América Latina. Durante três dias, representantes de governo e organizações não governamentais, da Argentina, Bahamas, Bolívia, Brasil, Canadá, Chile, Colômbia, Costa Rica, Equador, Estados Unidos, Republica Dominicana, México, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Uruguai e Venezuela, falaram sobre o acesso a mercado, liberação de tarifas, eliminação de subsídios, distorções no comércio de produtos agrícolas, entre outros temas, inclusive relacionados à sobrevivência de médios, pequenos agricultores, além da agricultura familiar.

No decorrer do evento, ficou claro que os participantes têm mais perguntas do que respostas. É o caso de Ivan Polanco, mexicano da ONG Anec, que recorreu aos atuais contornos da Nafta (sigla em inglês para Área de Livre Comercio da América do Norte), para questionar como será a Alca. “Nos moldes dos tratados, o México é um mercado residual de produtos estadunidenses, principalmente na agricultura. O pacto privilegia uma franja do comércio e uma elite de grandes produtos rurais”.

Em documento elaborado pelo movimento “El campo não aguenta más”, formado por doze organizações nacionais e regionais. Polanco chama atenção para um trecho afirmando que a “Nafta levou à pobreza 25 milhões de habitantes da área rural: que apesar de, entre 1994 e 2000, ter havido investimentos de US$ 1156 bilhões, não foram criados novos empregos e, além disso, esse dinheiro foi instrumento de desarticulação das cadeias produtivas, desnacionalização dos bancos, do setor industrial, de serviços e da agroindústria, através da fusão e compra de empresas já instaladas. Desse total de recursos, menos de 0,1% foi aplicado diretamente no setor rural”.

Essa denúncia é confirmada por um levantamento da Oxfam, uma ONG internacional com sede em Londres, distribuído no evento, abordando vários aspetos da Alca. Especialmente sobre o México, a pesquisa trata de “dumping” e afirma que as importações de grãos básicos no país asteca, no âmbito do tratado, duplicaram, “aumentando em 110 milhões de toneladas entre 1994 e 2001, a um valor US$ 18,5 bilhões. No caso do milho, as compras externas chegam, em média, a 6 milhões, anualmente. antes do acordo, eram de 2,5 milhões/t. O preço do mercado de grãos foi baixando e as cotações reais para o produtor caíram entre 35% e 65%. Atualmente, o produtor de milho recebe US$ 80 por tonelada, embora o custo de produção esteja na casa dos US$ 120/t.

Subsídios beneficiam os grandes

A entidade assegura que essa situação “prejudica a vida de mais de 2,5 milhões de produtores de milho, sem falara que houve um estancamento na produção nacional de grãos básicos, gerando uma dependência alimentar maior”. Mais adiante, observa que a progressiva redução do intervenção estatal no setor agrícola da América Latina e Caribe tem caminhado “lado a lado com a crescente concentração e integração vertical do setor privado”.

Acrescenta, ainda, que as negociações ocorrem entre os governos “supostamente” para beneficiar os agricultores e consumidores. Porém as empresas multinacionais são as que realmente exportam e se beneficiam do apoio norte-americano e das regras internacionais que, “em grande medida, elas próprias conceberam”. Ao mesmo tempo, essas exportações usufruem um complexo sistema de crédito, à exportação e do programa estadunidense de “ajuda alimentar” que facilitam a atuação no mercado internacional.

O Resultado – enfatiza a Oxfam – “é a consolidação do setor empresarial via integração vertical (compram, s e distribuem) e horizontal (abrangendo todo um setor)”. como exemplo, cita “cinco grandes oligopólios (Cargill, Continental, Louis Dreyfus, Bunge e Archer Daniel Midlands), que controlam cerca de 90% do comércio mundial de grãos.” Em suma, para organização, a Alca poderá “consolidar o controle do mercado por parte dos grupos poderosos compradores corporativos, contratando com a oferta fragmentada dos agricultores. Milhões de fornecedores e pequenos produtores, desesperados para vender a colheita, ficam em enorme desvantagens nas transações com as companhias transnacionais”, sentencia.

Governo sai de cena.

Desnutrição e fome crescem.

Quanto ao comércio interno e ao abastecimento, Polanco, citando o documento do “Campo não aguenta mais”, indica a existência de um clima de apreensão, pois “é evidente que o Estado renunciou à sua responsabilidade e, além disso, a política de liberalização e privatização selvagem somente trouxe, como conseqüência, o crescimento da fome e da desnutrição no México, o encarecimento dos preços aos consumidores e a deterioração dos alimentos disponíveis no mercado”, entre outros. Para ele, “a área livre (Nafta) é a expressão do fracasso do modelo de integração subordinada e do livre comércio na economia e na agricultura”.

Mas, para Danielle Ayotte, do Foreign Aftairs & International Trade, do Canadá, “O pacto é bom. A economia canadense tem conseguido alcançar índices de crescimento em torno de 3,8%, ao ano, desde 1994, época em que o sistema foi implantado”.

Em termos econômicos, onde cada peça, no caso a economia, tem sua característica própria, sua marca registrada. Embora com outras palavras, a metáfora é o representante da Contag (Confederação dos Trabalhadores da Agricultura), Alberto Ercílio Broch, ao assinalar que não basta a simples redução de tarifas ou a criação de tarifas específicas. O perfil multifacetado da região “exige um tratamento diferenciado, analisando cada caso em suas particularidades, sobretudo na área agrícola e, em especial, na agricultura familiar. O objetivo deve ser a geração de empregos e, principalmente, o resgate da soberania nacional”.

Também abordando o aspecto mais genérico da Alca, Adriano Campolina, da ONG Action Aid Brasil, comentou os vários dispositivos já divulgados do acordo, chamando a atenção para “a ambiguidade” de inúmeros itens, questionando a afirmação de que “comércio é igual a desenvolvimento”.

Com maquiadoras, surge cinturão de miséria.

Para ele, isso não corresponde a verdade, não tem fundamento. No caso da agricultura familiar, “cada 7 hectares é gerado um emprego. Na agropecuária empresarial, somente a cada 67 hectares ocorre uma vaga. Já no que diz respeito à competitividade, nos anos 70, a Parmalat ingressou no Brasil e o resultado foi a expulsão de 70 mil pequenos produtores de leite do setor. Também a Monsanto, num curto período de tempo, conseguiu dominar 60% do mercado de milho”. Isso mostra, avalia, que comércio não só não significa desenvolvimento, mais pode significar exclusão.

Na mesma linha de raciocínio, Edgard Garcia, da Nicarágua, disse que seu país, “em 10 anos, passou a ser o mais pobre da América Latina, como resultado do ajuste estrutural. Atualmente, há uma desestruturação completa na saúde, na educação, na habitação, saneamento, enfim. Os jovens, diante da falta de perspectivas, migram. Os que ficam, mostram alto grau de desnutrição, fato que acontece, também, com os recém-nascidos e suas respectivas mães”.

Não há trabalho. Os agricultores plantam feijão, mas não têm para quem vender. Isso porque as famílias, quando conseguem alguma ocupação, “não recebem mais do que US$ 15,00, por mês”. Nas cabeceiras dos rios, implantaram empresas maquiladoras e junto um “cinturão de miséria”. Em linhas gerais, finaliza, “a Alca não nos oferece nada. Ninguém se compromete a reduzir subsídios. Nós não sabemos como nos incluir nesse projeto”.

Ao encerar sua intervenção, Garcia parabenizou o povo haitiano pelo bi-centenário de independência “da primeira república negra da América Latina”. A propósito do Haiti, a pesquisa da Oxfam mostra que a pobreza e a desnutrição “aumentaram dramaticamente após a liberação do mercado. A tarifa do arroz foi drasticamente reduzida a 35% para 3%, em 1994/95. As importações de arroz subsidiado, dos Estados Unidos, provocaram queda na produção local, desmontando o meio de vida de 50 mil famílias produtoras. Atualmente, dois terços de arroz consumido no país são importados. O pior é que o Haiti não gera receita suficiente para manter o ritmo dessas compras e, com isso, aumenta suas dívidas”.

Proposta sobre plebiscito tem apoio unânime.

João Pedro Stédile, da coordenação nacional do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), fez um aparte para indagar como os governos vão garantir a presença popular nas discussões sobre a implantação da Alca, um dos objetivos do encontro. Para reivindicar que o discurso “não fique na mera retórica”, disse representar “100 entidades e a Via Campesina do Brasil” que pleiteiam um esclarecimento maior da população sobre o tema.

Para que isso ocorra de fato, sugere que, a cada 15 dias, seja veiculada, por 30 minutos, uma explicação sobre o que é e quais as conseqüências do tratado “de preferência em horário nobre da televisão. Sem TV não há povo, argumenta. Ao mesmo, seja distribuídos material didático nas escolas, igrejas, sindicatos, contendo opiniões do governo e dos trabalhadores, reunindo os “prós e os contras”. Pede, também, a realização de conferências nacionais e debates por área sobre o assunto, além de divulgação nas universidades.

Stédile acha que com essas medidas haverá mais transparência, principalmente “se, depois de tudo, o governo convocar um plebiscito até dezembro de 2004”. Isso, acrescenta, “vai permitir que, quando forem assinar, em 2005, saibam se estão ou não representando o povo. No Brasil, essa consulta está prevista na Constituição, especialmente sobre propostas relacionadas à soberania. E a Alca é isso. A preocupação é fortalecer o Mercosul e a América Latina”, assinala.

No contexto de representatividade, Stédile ganhou o apoio do argentino Fernando Berot, do Centro Internacional de Investigação Jurídica, para quem “falta uma conexão entre governos e os povos governados”. Ele também concorda com a realização de um plebiscito sobre o assunto que, de resto, teve aprovação unânime dos participantes. Além de apoiar a consulta popular, o representante do Equador, Patrício Zhingry, distribuiu documento elaborado pela Conaie – Confederação das Nacionalidades Indígenas do Equador, que pede a “abertura de processo judicial contra os Estados Unidos por danos e prejuízos causados pelas operações de fumigação na fronteira no norte do país”. Além disso, o movimento reivindica a proibição do uso de semente e produtos transgênicos.

Agricultura tradicional, uma preocupação.

Aurélio Suarez, da Colômbia, divulgou documento da “Associação da Agropecuária” em que pede ao governo “a suspensão imediata das negociações sobre a Alca no setor de agricultura e adote uma política conseqüente e patriótica na defesa da soberania alimentar do país e do trabalho de 15 milhões de colombianos que vivem na área rural e que são um suporte fundamental para o progresso e desenvolvimento da pátria”.

Isabel Delgado, representando os povos indígenas da Venezuela, reclamou da pouca “esotérica” divulgação dos vários aspectos abrangidos pela Alca e questionou sobre que tipo de tratamento “será dado ao conhecimento agrícola tradicional”.

Ao pedir um aparte, John Hardin, da Hardin Farms, dos Estados Unidos, afirmou que seu país “está comprometido com abertura do mercado”. Não obstante, confirmou que os produtores de arroz, algodão, trigo, soja e laticínios “recebem subsídios do governo norte-americano. O único setor não subsidiado é o de suínos”. Desviando o foco do encontro, sugeriu um fortalecimento nos instrumentos de “pressão sobre a União Européia, ou todos vamos pagar pelos subsídios concedidos aos agricultores europeus”. Admitiu, ainda, que o governo dos Estados Unidos “é exigente nos aspectos sanitários e fitossanitários. Os padrões são rígidos e isso dificulta o comércio e até a competitividade”.

Em recente entrevista aos “Cadernos Diplô”, publicação do jornal Le Monde Diplomatique, da França, o secretário geral do Ministério das Relações Exteriores, do Brasil, Samuel Pinheiro Guimarães, define a Alca como sendo um “projeto de criação de um território econômico único, onde não haverá barreira nenhuma para circulações de bens, tarifárias e não tarifárias. Nessas condições, o Estado brasileiro abdica da possibilidade de ter política comercial, porque não pode ter mais nenhum obstáculo ao comércio”.

Se abdicar da possibilidade de ter política comercial, prossegue, “abdica, também, da possibilidade de ter política industrial, porque abre mão de uma parte importante dessa política que é a proteção a novos investimentos. Sem política industrial, perde o sentido a política tecnológica, pois ela só faz sentido gerar uma inovação que vai reduzir novo produto. Por isso, a Alca impedirá o desempenho econômico brasileiro”.

Além disso, enfatiza, a “Alca tem efeitos muito graves muitos graves sobre o mercado, mão de obra, a exclusão social e inclui efeitos políticos extraordinários. Vai impedir que a sociedade brasileira tenha os instrumentos necessários para desenhar e aplicar políticas públicas fundamentais para enfrentar as profundas desigualdades, que são características marcantes do País”. Finalizando, assinala, taxativo, que o Brasil “precisa é desenvolver suas potencialidades (…) e não precisa da Alca para fazer isso”.

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