Pecuária

História: americano melhorado de um jeito bem brasileiro

Monkey, o ‘primeiro gigante vermelho’ – assim chamado na época – foi o grande precursor de uma nova raça, a Santa Gertrudis. O touro era um resultado da cruza do zebuíno Brahman com o taurino inglês Shorthorn.

A experiência teve êxito em 1920, na propriedade King Ranch, dirigida por Robert Kleberg Jr. e Dick Kleberg, no município de Kingsville, Texas, nos Estados Unidos (EUA). A busca era a produção de um gado de corte rústico, que se adaptasse às duras condições climáticas daquela região. Foram necessários 10 anos de pesquisas e cruzamentos até chegar nesse exemplar, 3/8 Brahman e 5/8 Shorthorn, que leva o nome do rio da região onde nasceu. Mas, só em 1940, a Santa Gertrudis foi oficialmente reconhecida pelo departamento de agricultura norte-americano como a primeira raça de gado de corte desenvolvida nos EUA.

Aqui no Brasil, o primeiro animal Santa Gertrudis veio como um presente ao então presidente Getúlio Vargas (1882-1954) dado pelos proprietários do King Ranch – isso, por volta da década de 1950. Quem conta essa história é um dos criadores e selecionadores mais respeitados da raça no País, o americano Carson Zachary Geld, da fazenda Pau D’Alho, no município de Tietê (SP). A idade, 80, e as sequelas deixadas por um acidente vascular cerebral (AVC) em 2005 de forma alguma apagaram as lembranças daquela época. De acordo com Carson, Vargas ganhara um touro da linhagem de Monkey que foi dado a um “japonês”, muito amigo do presidente. Ao saber disso, um grande fazendeiro da época, Guilherme Campos Salles, acabou conseguindo esse touro.

“King Ranch ficou muito bravo, porque ele não queria deixar aquele sangue para outras pessoas estranhas”, lembra Carson. “Então foi Campos Salles que pegou esse touro e começou a disseminar a raça aqui no Brasil”. Posteriormente, o próprio King Ranch se instalou no País para trabalhar a raça a fim de melhorá-la e também desenvolvê-la em cruzamento industrial.

A vinda ao Brasil

Atualmente, a raça mostra-se bem adaptada ao frio da região Sul e melhor ainda ao calor do Centro-Oeste e Norte brasileiros. Um trabalho de seleção que contou com a vinda da família Geld em 1953. Carson e a esposa, Ellen Bromfield Geld, trocaram o solo norte-americano para se aventurar num país que dava sinais de industrialização. O convite para se mudar para cá, segundo Ellen, partiu de um fazendeiro daqui do Brasil, que visitava a propriedade do pai dela, próxima ao município de Mainsfield, Ohio, nos EUA. O produtor tinha por objetivo desenvolver um projeto semelhante ao do pai dela em solo brasileiro.

A propriedade de referência era de Louis Bromfield (1896-1956), que além de fazendeiro também foi um escritor muito conhecido. Na fazenda Malabar, ele desenvolvia um trabalho interessante em conservação de solo. Lá havia de tudo um pouco, como a cultura de grãos e criações como gado, carneiro e porco. A intenção daquele visitante era implantar uma Malabar em terras brasileiras. Segundo Ellen, a partir do relato dele, as pessoas que estavam produzindo alimentos aqui no País, naquela época, estavam mudando para a cidade, em função da ideia de prosperidade que o processo de industrialização trazia, e, por isso, a produção de alimentos se enfraqueceria. “Então, ele queria, entre outras coisas, provar que no Brasil você poderia plantar tudo que se planta no mundo inteiro. Ele queria formar uma fazenda nos moldes da de meu pai”.

O convite foi feito e apesar do Brasil jamais estar nos planos do casal Geld, o desejo por uma terra só deles, para fazer o que bem entendessem com ela, os trouxe pra cá. “Nós estávamos num momento de decidir o que fazer, e queríamos realmente de ter uma propriedade realmente nossa”, conta Ellen. “Ele convenceu a gente, e, de repente, aparecemos aqui, com filho e cachorro”, lembra bem humorada.

A seleção do Santa Gertrudis

O trabalho de seleção na fazenda Pau D’Alho começou a partir do plantel do King Ranch daqui do Brasil. “Nós pensamos, ‘essa é uma raça nova’”, conta Ellen. “Então vamos pegá-la para divulgar, para não entrar no meio de zebu, porque todos, na época, criavam. Compramos o boi daqui, formamos pastagens, e levou tempo”. A criação tornou-se um desafio para o casal Geld. Os animais precisavam de correções na pele, que era muito solta, e no umbigo, muito longo, por exemplo. Características que foram aos poucos sendo amenizadas, até chegar num animal precoce, rústico e que se desenvolve bem mesmo em condições baixas de pasto.

As participações em feiras e exposições foram mostrando o tipo de trabalho que deveria ser desenvolvido com o gado. Numa dessas ocasiões, lembrada por Carson, a fazenda levou uma novilha que seria o grande sucesso da exposição, capaz de desbancar todas as outras e levar o troféu de grande campeã – era uma das primeiras vezes que a família Geld participava de uma pista de animais. Segundo, o selecionador, era uma exposição no Parque da Água Branca, na década de 1960, em São Paulo (SP).

“Tinha um juiz americano que veio, o nome dele era John Craicker. E nós tínhamos essa novilha que achávamos que era a top, bonita, 100%. Ela foi resultado de uma seleção de animais importados dos Estados Unidos. Então nós achávamos que íamos ganhar a taça. Aí, entraram na pista todas as novilhas de todos os criadores e a nossa novilha. Depois o juiz foi apontando todos os defeitos dos animais que estavam na pista. Quando ele chegou no nosso animal, ele disse que poderia ficar falando por um ano sobre os defeitos dela”, relata com muito bom humor sobre a situação, e Ellen, nesse mesmo tom, disse ainda: “Ela tinha todos os defeitos. Nós ficamos furiosos, com o Craicker. Mas ele acabou sendo um grande amigo nosso”.

Hoje a história se reverte, segundo Carson. “Se 25 animais entram hoje em pista, todos eles apresentam boas qualidades da raça e podem ser premiados”, diz o pecuarista. Episódios como esse da novilha serviram de lição para o melhor desenvolvimento da seleção do gado. Um exemplo disso se reflete no concurso entre as fêmeas do Santa Gertrudis, promovido pelo casal há 25 anos, o Novilha do Futuro – o último, realizado no dia 4 de abril deste ano. O evento reúne os criadores da raça para avaliação dos animais que, para participarem, devem estar com prenhez confirmada e com parição até os 24 meses de idade. “Hoje em dia é cada vez mais difícil julgar [as novilhas]”, destaca Ellen, “porque elas se aperfeiçoaram tanto que estão ficando todas iguais, como devem ser, como qualquer raça de gado. Então com o tempo elas foram absorvendo o sangue de outras raças, e se traduzindo isso em Santa Gertrudis”. Além da avaliação dos animais, o Novilha do Futuro também se destaca pela venda desses exemplares de puro sangue em leilão, como uma forma de disseminação de uma boa genética aos criadores do País.

Adaptação às necessidades de mercado

A dedicação a uma raça requer um trabalho técnico de avaliação sobre que tipo de animal o mercado pede, e o que se deve fazer, em termos de manejo, para atingir esse padrão. Nesse sentido, a Associação Brasileira de Santa Gertrudis (ABSG) pôde divulgar e auxiliar a disseminação da raça em todo País. Um trabalho que contou com a participação de José Arnaldo Amstalden, superintendente técnico da associação.

Foram 35 anos dedicados ao melhoramento da raça. E ao longo desse período, Amstalden percebeu a necessidade de mudança morfológica do animal que o mercado exigia. Isso tornava o trabalho com a raça desafiante. Segundo ele, no início o animal tinha de ser de conformação mais compacta e de estatura média para mais baixa. Depois, isso mudou totalmente. O que se exigia era um animal mais alto, pesado e de terminação mais tardia. “Na década de 1990, isso tudo mudou novamente. Voltou-se ao animal de estatura mediana, com uma boa cobertura de carne, de acabamento rápido e que depositasse o mínimo de gordura”, lembra.

Pelo mesmo processo tiveram de se adaptar as demais raças desenvolvidas no País, mas o trabalho que realmente importa, segundo Amstalden, está nas características produtivas do Santa Gertrudis, como a funcionalidade, desenvolvimento rápido e precocidade. “Se for fêmea tem de parir todo ano, e já iniciar cobertura em torno de 15 a 18 meses, em regime de campo. O touro tem de caminhar bastante, possuir bons cascos, ter boa libido e fazer um bom trabalho de cobertura a campo, mesmo em regiões mais extensas”, enfatiza.

Produtos de qualidade

E todas essas qualidades estão presentes na raça e que produzem resultados bem interessantes no caso de cruzamentos industriais a partir dessa funcionalidade dos touros em vacas zebuínas. “Eles produzem um animal muito interessante que é o meio sangue Santa Gertrudis”, destaca Luis Fernando Doneux Jr., gerente de pecuária da fazenda Jatobá, em Itaí (SP). “O resultado é um animal que vai ter precocidade, que vai ficar pronto mais cedo, com uma qualidade de carne excepcional.

Nos cruzados, criados a campo, eles vão chegar com 27 a 30 meses prontos, com 17 a 18 arrobas. Mas eu já cheguei a confinar animais na fazenda com 14 a 15 meses prontos para o abate”, atesta. Palavras de um bom conhecedor da raça há, mais ou menos, 20 anos. Em um dos trabalhos de registro de animais, que fez a convite da ABSG, em diversas regiões do País, Doneux pôde conferir a eficiência do rebanho. “Eu fui vendo a adaptação da raça em condições extremas, no Rio Grande do Sul, e para minha alegria, no norte do País, Goiás, Centro-Oeste, a adaptação foi melhor ainda”, conta.

Atualmente sob o comando do criador Antonio Roberto Alves Corrêa, a ABSG, localizada em São Paulo (SP), congrega mais de 100 criadores, os quais são responsáveis por um rebanho estimado em cerca de 35 mil cabeças. Um número muito pequeno se comparado à população brasileira de bovinos de 169,9 milhões de cabeças, segundo dados de 2006, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

O Santa Gertrudis pode significar apenas 0,02% do rebanho nacional, mas é uma raça sintética nova, que está apenas há cerca de 70 anos presente mundialmente, e, aqui no Brasil, há cerca de 50 anos. Pelo resultado garantido nesse curto período, dá para sentir o quanto essa genética poderá desenvolver para a produção pecuária brasileira.

Um destaque não só aos touros, mas às fêmeas desse sangue. “Elas têm uma habilidade materna, uma habilidade de leite, elas desmamam uns bezerros muito pesados, então tem um índice, uma venda de bezerros, muito valorizada”, destaca o presidente da ABSG. “E isso vem proporcionando uma difusão da raça, para cruzamento, além do que, nós vemos, cada vez mais, que as pessoas estão terminando os animais com mais antecedência, e para isso precisam de um grau de docilidade que só o Santa Gertrudis tem”.

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