Edições Anteriores
DEDO DE PROSA - HÉLDER MUTEIA
rev 178 - dezembro 2012

Entrevista Hélder Muteia
Revista Rural – Diante do atual contexto da produção de grãos no País, como o caso da majoração de preços do milho em função da exportação, que vai desestabilizando outros elos da cadeia produtiva de alimentos, qual seria a saída do Brasil para não deixar mais ocorrer os abates de pintinhos, como o senhor mesmo fez o destaque? Como a FAO vê essa competição entre os segmentos da cadeia produtiva de alimentos?
Hélder Muteia – Todas as experiências de restrições de exportação que foram feitas no mundo falharam. Tanto é que as políticas que a FAO recomenda são de abertura do comércio, isso pensando sempre que assim daremos as melhores indicações no mercado, na qual as vantagens competitivas e comparativas existem. Então, o que aconteceu aqui no Brasil em relação aos pintinhos se deu em função ao anúncio que produção de milho nos Estados Unidos seria baixa. Consequentemente os preços do milho subiram, e como estamos num mercado globalizado, os produtores brasileiros do cereal acharam muito melhor vender o produto no mercado internacional. Isso acarretou em o não cumprimento de alguns compromissos locais. Estava mais fácil exportar do que vender internamente, ou quando houve a venda interna, o grão tornou-se extremamente caro. Então, especialmente os pequenos produtores, porque os grandes sabem muito bem como se equilibrar, mas o pequeno que vê ali a ração extremamente cara, e com os pintinhos na mão, prefere matar, pois sabe que vai perder mais dinheiro se continuar a manter a criação nessas circunstâncias. Então, essa é uma situação da globalização e é um desafio muito grande. Por isso temos de estar preparados, temos de criar estoques. Chamo a atenção dessa prática de reforçar os estoques. Se tivermos bons estoques, nos conseguimos equilibrar o mercado. Se o mercado mundial tiver alguma crise, recorremos a eles. Então é importante que os países façam isso, no entanto, hoje em dia estamos mais preocupados porque o que consumimos é mais do que produzimos.

Rural – Falando em termos de insuficiência de produção, no caso do trigo, no Brasil temos também uma particularidade em termos de qualidade além da própria concorrência do produto importado, o que desestimula o produtor a optar por essa lavoura. Como o senhor vê o desenvolvimento dessa cultura aqui no País?
Muteia – A única cultura em que o Brasil não é autossuficiente é justamente o trigo. Nas demais culturas o País possui autossuficiência. O trigo nas regiões temperadas na Europa estaria no melhor centro de produção, o Brasil não teria como concorrer com essas regiões. Infelizmente criou-se uma cultura em todo o mundo que é do consumo do pão de trigo. Dou exemplo de meu próprio país, Moçambique, que não produz trigo, mas que possui demanda para que no café da manhã tenha um pouco de pão de trigo. E há alternativas para isso, já tivemos o consumo do pão à base da farinha de mandioca, ou da farinha de milho, ou de outros cereais, mas de repente, o pão de trigo é o que está mais globalizado. No Brasil, há um nicho de mercado, há produtores que fazem essa produção, mas por muito tempo, o País ainda vai ser deficitário nessa lavoura, pois as condições climáticas, não são as ideais para as variedades de trigo que existem. Mas há pesquisas que demonstram que há novas variedades, e essas sim, o Brasil possa ser mais competitivo. Um trabalho que tem sido feito pela Embrapa e demais outras instituições de pesquisas.

Rural – Diante desse cenário no qual é preciso aumentar a produção de alimentos mundialmente, o conflito de espaço da produção de biocombustíveis e produção de alimentos pode ocorrer no Brasil?
Muteia
– Certamente isso pode ocorrer em todo o mundo. Só que temos aí uma questão, na qual os biocombustíveis destacam-se como uma oportunidade, não só de energia renovável, mas também de geração de emprego e de investimento no setor agrário. Só que ao mesmo tempo os biocombustíveis podem competir pela utilização de terras mais férteis com a produção dos alimentos. Então essa situação gera um risco. Isso não quer dizer que nesse momento estamos já vivendo uma situação dramática. Apenas digo que é um risco de deve ser controlado. Outra questão que também se deve dar atenção é que em alguns países são produzidos biocombustíveis com subsídios elevadíssimos, como é o caso dos Estados Unidos. Isso distorce o mercado e traz uma grande preocupação. O que é recomendado, e isso é uma recomendação da FAO, é que esse incentivo ao biocombustível seja feito através de vantagens comparativas. É tanto mais fácil produzir etanol da cana-de-açúcar do que do milho, por exemplo, ou mesmo da beterraba. Já é extremamente ineficiente produzir açúcar da beterraba, então imagina então produzir etanol. Então, isso tem de ser feito com bases comparativas e competitivas.

Rural – Mais do que nunca, hoje a pressão é maior por processos produtivos que menos impactariam o meio ambiente. Nessa vertente, crescem os grupos de agricultura orgânica. O senhor considera possível combater a fome no mundo apenas com esse tipo de produção?
Muteia
– Isso é uma questão filosófica. Recentemente participei de um debate internacional no qual alguns tentaram demonstrar que é possível sim produzir e alimentar o mundo com uma produção mais ou menos orgânica. Mas o que ocorre de fato não é isso. Muito embora as pessoas tenham críticas à Revolução Verde, foi justamente ela que conseguiu nos livrar daquele paradigma malthusiano em meados dos anos de 1960 e nos permitiu dar um grande salto, com base no uso de tecnologia e no uso regulado de alguns agroquímicos de forma controlada. A grande crítica dessa Revolução Verde foi para quem abusou exatamente dessa oportunidade. Abusou no uso de agroquímicos, pois havia muita legislação sobre isso, não havia muito conhecimento, além disso, houve quem desmatou também. O que recomendamos é que precisamos dessa Revolução Verde baseada em tecnologia, uma tecnologia muito aberta, sem muitas restrições e ambientalmente responsável. Qual é o problema do agroquímico? Só há problema quando é mal utilizado, sem regras e tudo mais. Então, nós temos de garantir que a responsabilidade social esteja lá. Quem produz e quem utiliza deve possuir mecanismos para que nós possamos regulamentar e utilizar bem os agroquímicos, de forma inteligente para que nós possamos ter diferentes alternativas. Certamente há espaço no mercado, um nicho, para aqueles que querem alimentos orgânicos, mas nós deveremos abrir espaço para que a disponibilidade seja garantida pelo uso de tecnologia.

Rural – Com relação aos preços dos alimentos no mercado, o que tem se falado que muitas economias vão ter de se deflacionar para garantir a oferta de alimento com um preço acessível à população e também que satisfaça o produtor. Como o senhor vê essa questão?
Muteia
– A questão do preço dos alimentos está permeada de várias outras questões. A primeira diz respeito do regime institucional. Quando o preço dos alimentos oscila dramaticamente, os pequenos produtores perdem. Perdem em primeiro porque eles não conseguem adaptar-se rapidamente. Perdem porque, normalmente, eles produzem milho apenas, ou produzem apenas soja. Mas quando vão ao mercado, não consomem só soja, têm de adquirir outros produtos, e o restante desses outros produtos estão excessivamente caros. Na compra desses itens que lhes faltam, estes já estão processados e altamente inflacionados. Mesmo quando há tamanha oscilação nos preços no mercado, para o produtor, esse preço não oscila muito. É uma coisa que é preciso ser dita ao público, é de fato os intermediários da cadeia produtiva que detêm os maiores ganhos sobre isso. Então se o preço de um produto aumenta 40%, o agricultor teria um aumento de 5% no final. Esse é de fato o grande problema para os pequenos. O que nós recomendamos nesse caso, é que os países estejam mais abertos ao comércio, porque o comércio aberto e transparente dá as indicações certas onde investir. Naturalmente isso é um papel do Estado, para regulamentar e apoiar os setores mais vulneráveis e mais fracos.

Rural – Qual a posição do Brasil nessa Revolução Verde e como estamos no cumprimento das metas de até 2015 erradicar a fome internamente?
Muteia
– O Brasil é um dos poucos países de já conseguiu cumprir a meta do milênio, já conseguir reduzir em 50% o número de pessoas, aproximadamente, que passam fome. O Brasil conseguiu isso graças ao uso de tecnologias, a adoção de algumas políticas, e a aposta muita clara na produção agrícola e no agronegócio. É uma grande expectativa que o mundo tem, em relação ao Brasil, que partilhe sua história, partilhe as suas tecnologias e experiências. No sul da África e no sul da Ásia, particularmente, onde a situação da fome está estigmatizada, de certa forma, esses tipos de tecnologias seriam bem-vindos. Então não só queremos tecnologias produtivas, mas também tecnologias sociais. Como se organizam os camponeses, como se organizam os produtores, cooperativas, ou mesmo as cadeias produtivas. Então precisamos resolver isso. O Brasil está num bom caminho, naturalmente, e nós queremos que essas experiências sejam partilhadas.

Rural – Dados da FAO estimam uma redução drástica para 30% a população de vive no campo. Quais seriam as medidas para reverter isso e estimular que o produtor continue no campo?
Muteia
– É uma realidade. Em 2050, 70% da população no mundo será urbana, ou seja, viverá nas cidades. Os 30% restantes vão continuar a viver no campo. Serão os produtores. Eles que vão produzir os alimentos para nós. A grande preocupação da FAO é garantir é que esses 30% que devem ficar no campo sejam os melhores produtores, que teriam a melhor consciência do setor agrário, sobre como produzir os alimentos. E não apenas aqueles que ficam lá por acaso. Para isso, teremos de criar incentivos no campo, especialmente os incentivos tecnológicos, com uma aposta na agroindústria. Isso é o que deve reter os milhões de jovens no campo. O apoio também deve ser dado através de serviços sociais, porque o jovem só trabalhará no campo se puderem ter as melhores condições de educação com melhores escolas para seus filhos, se puderem ter os melhores hospitais, acesso à internet, eletricidade e os serviços básicos. Então, é isso que o mundo tem de fazer. Garantir que no campo nós tenhamos exatamente todos os incentivos para uma qualidade de vida para que possamos ter campo os melhores.

Rural – Qual o peso do Brasil na oferta de alimentos para o mundo?
Muteia
– O Brasil é um dos maiores produtores e exportadores de alimentos. Isso é uma realidade. Não posso dar isso em porcentagens, mas posso dizer que a expectativa do mundo, é que o Brasil faça duas coisas. Primeiro, que continue a produzir alimentos, para garantir a disponibilidade no mercado mundial. Porque uma oscilação de produção no Brasil prejudica. Então queremos que o Brasil continue a aumentar essa produção. E, segundo, queremos que o País partilhe as suas experiências em termos de tecnologias produtivas e tecnologias sociais com os quadrantes que estão mais carenciados nesse campo, que seriam basicamente a África subsaariana e o sul da Ásia. Isso significaria levar tecnologias, profissionais treinados, as experiências de cooperativas, levar até talvez, produtores que queiram investir nesses quadrantes.


Edicões de 2011
Volta ao Topo
PROIBIDA A PUBLICAÇÃO DESSE ARTIGO SEM PRÉVIA AUTORIZAÇÃO DOS EDITORES