A recente venda dos poços que comporiam a reserva nacional
não se justifica, principalmente diante das chamadas
"guerras preventivas" deflagradas pouco tempo atrás.
Não obstante, a licitação pode ser explicada
pela sentença "o petróleo é vosso",
proferida por David Zylberstein, na época, presidente
da Agência Nacional do Petróleo, durante cerimônia
de inauguração do órgão.
Porém,
desde 500 anos atrás, o Brasil, como "país
do futuro", apresenta, pelo menos teoricamente, condições
de compensar as sandices governamentais e mostra um farto
e variado cardápio energético contendo substitutos
ao combustível fóssil. Baseado nessa oferta,
o governo Lula da Silva lançou, em 2003, um programa
para levantar a viabilidade do uso de óleo vegetal,
como fonte alternativa de energia. O "Programa Nacional
de Biodiesel" possui um grupo de trabalho formado por
integrantes de onze ministérios: Agricultura, Pecuária
e Abastecimento; Cidades; Ciência e Tecnologia; Desenvolvimento
Agrário; Desenvolvimento, Indústria e Comércio
Exterior; Fazenda; Integração Nacional; Meio
Ambiente; Minas e Energia; Planejamento, Orçamento
e Gestão; e Transportes, coordenados pela Casa Civil
da Presidência da República.
O
objetivo do projeto, além da geração
de energia a partir da biomassa, é "a inclusão
social e a regionalização do desenvolvimento,
através do apoio à agricultura familiar, fortalecimento
da produção de oleaginosas e sua comercialização,
com ênfase nas regiões Norte e Nordeste",
do País. As pesquisas contemplam, com alguma prioridade,
produtos como a soja, mamona e girassol. Porém, não
descartam a possibilidade de utilização do algodão,
amendoim, arroz, babaçu, coco, colza, gergelim, linhaça,
milho (germe), palma e palmiste, entre outros componentes
do generoso "menu" existente na flora brasileira.
Também prevê ações de preservação
do meio ambiente.
A
idéia de usar vegetais como fonte para o diesel não
é nova. Em 1895, Rudolf Diesel desenvolveu o motor
que leva seu nome, injetando o óleo de amendoim como
combustível. No início do século XX os
testes tiveram alguma continuidade, mas os baixos preços
dos derivados interromperam as experiências. No Brasil,
durante o primeiro choque do petróleo, no início
da década de 70, o diesel vegetal foi visto como alternativa.
Porém, segundo o físico, professor e mentor
do projeto, J.W. Bautista Vidal, "houve resistências."
Solução
não atrai interesse
Na
ocasião, acrescente, "a Mercedez Benz, praticamente
detinha o monopólio de caminhões e ônibus
a diesel, no Brasil. Os motores utilizados, no entanto, não
queimavam a glicerina contida nos óleos vegetais porque
a combustão ocorre numa temperatura abaixo da necessária.
Isso colocou a empresa contra o programa e a companhia conseguiu
convencer o governo do turno a não investir nesse tipo
de combustível." Segundo ele, os motores de ciclo
diesel, ou Elsbett, queimam essa glicerina e, ao contrário
dos da Mercedez não precisam ser abertos com certa
freqüência para retirar a crosta que se forma devido
à não-queima. Esse tipo de engenho, observa,
"dispensa qualquer modificação" para
operar com óleo vegetal, "que é limpo,
aumenta a potência e permite rodar até 40 km/litro."
A
saída para contentar a montadora, acrescenta Vidal,
foi "transesterizar" o óleo (tirar a glicerina)
para a empresa usá-lo. Porém, o projeto não
avançou, "a solução encontrada parece
não ter sido das mais atraentes, pois a indústria
automobilística nacional tem suas decisões tomadas
no exterior, de acordo com os interesses da matriz."
Trinta
anos depois, a questão ainda persiste. Mas, agora,
equacionada. José Carlos Miragaya , gerente de energia
renovável da Petrobras, acredita que o subproduto,
depois de extraído, pode render "cerca de l6 mil
toneladas, por ano, cotada, hoje, a US$ 800,00/t, que poderão
ser usadas para a fabricação de várias
coisas, entre elas, cosméticos e sabonetes." Porém,
deixa claro que esse volume somente será alcançado
se "o óleo consumido for o B5" (5% de mistura
ao diesel convencional ou etanol). A informação
foi dada durante seminário promovido pela CUT-Central
Única dos Trabalhadores, no final de agosto último,
em São Paulo.
Em
sua palestra, Miragaya elencou o que considera algumas vantagens
como conseqüência do uso do vegetal. Entre elas,
cita o fato de ser um combustível "totalmente
renovável, desde que aplicado com o etanol. Com o metanol,
isso não é possível." Vai permitir,
ainda, uma economia de petróleo, pois substitui a importação,
dará facilidades para obtenção do crédito
carbono, uma vez que é visto como instrumento MDL (Mecanismo
de Desenvolvimento Limpo), além de gerar emprego e
renda, "tendo como ponto crucial, o fato de não
precisar de grandes extensões para o plantio. Uma pequena
propriedade é suficiente", assegura. Além
disso, a "agricultura energética" vai fortalecer
a produção local e "mercados não
alimentícios, como a cultura do nabo forrageiro."
Ao
que diz, a opção pelo combustível vegetal
está sendo impulsionada por determinação
do Protocolo de Kyoto, que prevê a redução
de gases poluentes e, principalmente, os de efeito estufa.
O objetivo de pelo menos diminuir os índices de poluição
tem gerado uma corrida mundial em busca de um substituto aos
energéticos fósseis. A União Européia
concede incentivos à produção e ao consumo
de biodiesel com a "desgravação tributária"
e mudanças na legislação do meio ambiente.
A Alemanha saiu na frente e, hoje, é responsável
por 56% da produção de biocombustível,
cerca de 600 milhões de litros, e tem cerca de 1.400
postos (dados de 2002), de abastecimento de óleo puro
(B100). O total produzido na Europa ultrapassa 1 bilhão
de litros e o crescimento gira em torno de 30%, ao ano. França
e Itália são outros grandes produtores.
Apesar
dos privilégios, há descompasso
Nos
Estados Unidos, não há redução
tributária e a produção está próxima
a "l00 mil toneladas", sendo considerada incipiente
"apesar de um subsídio de US$ 2,50/galão."
Mas existem planos ára que o país diversifique
a matriz energética. A Malásia pretende produzir,
ainda este ano, 500 mil toneladas. A Argentina também
incentiva o alternativo, inclusive com desoneração
fiscal por 10 anos. Todos os países que estão
adotando o programa, indicam pretensões de utilizar
uma adição mínima de 2%, já a
partir de 2005, sendo que, na Europa, a previsão é
de que, até 2010, essa mistura chegue a 5,75%. Para
alcançar esta meta, há uma intensa articulação
entre fabricantes de veículos e peças, buscando
acelerar os testes de funcionamento.
Depois
de vários levantamentos, o grupo de trabalho interministerial
(GTI), constatou que o Brasil detém considerável
conhecimento acumulado na área de biocombustíveis.
Porém, "o País está em franco descompasso
com a capacidade produtiva de biomassa, mesmo dispondo de
condições privilegiadas de solo e clima para
a produção de várias matérias-primas
vistas como fontes, inclusive com várias rotas tecnológicas
(transesterificação etílica ou metílica
e craqueamento térmico ou catalítico, dentre
outras)."
O
combustível vegetal faz parte da agenda de pesquisa
e desenvolvimento de entidades públicas e privadas,
como os ministérios da Ciência e Tecnologia,
Minas e Energia, Embrapa, Agência Nacional de Petróleo,
Petrobras, Abiove, Tecbio e a CNA-Confederação
Nacional da Agricultura. Além desses, a COPPE/UFRJ-Coordenação
de Programas de Pós-Gradução de Engenharia,
da UFRJ, realiza testes para extração de biodiesel
do óleo usado em frituras de cozinhas. Esse projeto
tem a parceria do Instituto Virtual Internacional de Mudanças
Globais (IVIG). Também o Ladetel-Laboratório
de Desenvolvimento de Tecnologia Limpa, da USP-Ribeirão
Preto (SP), incursiona na área.
A
Universidade Federal do Ceará desenvolve trabalhos
para aproveitamento da mamona. A Universidade Federal do Maranhão
busca viabilizar o uso do óleo de babaçu. O
Instituto de Tecnologia do Paraná (Tecpar), é
sede do Cerbio-Centro de Referência em Biocombustíveis,
e faz experimentos com mistura B20 (20% de biodiesel). Na
área privada, o destaque fica com a empresa Soyminas,
do grupo Biobrás, que possui unidades, já em
operação comercial, em Cássia (MG), Campinas
(SP) e Chapadão do Céu (GO), com a produção,
cada uma delas, de l0 mil litros/dia. O produto é comercializado
como "éster-etílico, pois o biodiesel não
é, ainda, combustível homologado."
Ainda
na iniciativa particular, no Ceará, a Tecbio-Tecnologias
Bioenergéticas implantou projeto de plantio de mamona
para obtenção de energia. Em 2003, a lavoura,
prevista em 100 mil hectares, seria consorciada com o feijão,
buscando reduzir a ociosidade da terra. Os resíduos
seriam transformados em torta ou, ainda, em ração
animal, após um processo de limpeza dos ingredientes
tóxicos. Nesse aspecto, Miragaya comenta que o diesel
de soja também precisa de um tratamento prévio
"para tirar o excesso de fósforo. Sem essa 'desintoxicação'
haverá problemas no funcionamento do motor."
Projeto
pode gerar 1 milhão de empregos
A
Tecbio avalia que a fabricação do biocombustível
pode minorar o êxodo rural, pois "a cultura exige
um agricultor a cada 2 hectares, 250 dias por ano, promove
o seqüestro de carbono e, ainda, pode assegurar um lucro
de R$ 500,00/hectare." De acordo com cálculos
da empresa, "1 milhão/t de semente, rende 450
mil litros."
O
programa governamental segue a mesma linha, ou seja, contempla
o pequeno produtor ou a agricultura familiar, segmento que,
segundo o GTI, é composto por 4,13 milhões de
pessoas, "representando 85,2% dos estabelecimentos rurais
do País. Destes, 49,6%, estão no Nordeste e
são os mais pobres. Em termos de assentamento, o total,
no Brasil, chega a 6.067, com uma população
de 475.779 ocupantes, espalhados por todo território
nacional." Essa categoria é responsável
por cerca de "40% do valor bruto da produção
agropecuária", e garante que parcela significativa
dos alimentos chegue à mesa dos brasileiros, como "feijão
(70%); mandioca (84%); carne suína (58%); leite (54%);
milho (49%); e aves e ovos (40%)."
Caso
haja necessidade de ampliar a área de plantio, essa
expansão será mínima, em torno de 1,27%,
segundo o GTI, ao estimar que as lavouras tocadas pelos pequenos,
no país todo, ocupam uma extensão de 1,86 milhão/ha.
Embora não tenha dados mensurados, o grupo afirma que
"existem terras sub-aproveitadas, disponibilidade de
mão-de-obra e espécies de oleaginosas com grande
adaptação e produtividade" nas regiões
analisadas. O levantamento também permite calcular
os investimentos necessários, que serão da ordem
de R$ 1,32 bilhão. Com o acréscimo de renda,
proporcionado pela produção e venda da biomassa,
o retorno dessa aplicação é estimado
em R$ 2,8 bilhões, mais que o dobro.
O
trabalho também considera, com base em estudos da USP,
que cada emprego no campo, possibilita a criação
de três postos na cidade. Assim, num cenário
abrangendo as cinco regiões, com exploração
de cinco produtos diferentes (palma, mamona, amendoim/girassol
e soja), seriam criados 269,6 mil empregos diretos (na área
rural) e outros 809,07 mil postos (zona urbana), significando
um total de 1,07 milhão de pessoas ocupadas e envolvidas
na fabricação de 2,78 milhões/t de biocombustível.
Conforme o GTI, essa oferta de vagas teria como origem a incorporação
de "apenas 6%" do segmento na cadeia produtiva do
óleo.
Se
a escolha recair sobre a utilização da soja,
como insumo, será preciso investir R$ 3,7 bilhões,
a um custo médio de R$ 800,00/ha, "com geração
de apenas 46.375 empregos, com cada vaga custando, em média
R$ 80 mil." Essa diferença na criação
de postos de trabalho é explicada pelo fato de que,
na agricultura empresarial, dependendo da cultura e da tecnologia
usada, são exigidos "cerca de 100 hectares para
ocupar uma pessoa, enquanto o sistema familiar pede somente
10 hectares", implicando, nesse caso, que cada emprego
envolve uma família.
O
grupo interministerial estima que o consumo atual de diesel
convencional seja de 30 milhões de toneladas, distribuídas
da seguinte forma: 4,4 milhões/t, para o Nordeste;
2,4 milhões, para o Norte, 13,3 milhões, para
o Sudeste: 3,6 milhões, para o Centro-Oeste; e 6,1
milhões/t, para o Sul. Com o óleo vegetal, em
sua etapa inicial de produção, em torno de 2,8
milhões/t, essa demanda teria outro desenho: 415,5
mil/t, NE; 222.,6 mil, N; 1,2 milhão/t, SE; 333,9 mil,
CO; e 571,3 mil/t, S. Nessa primeira fase, 30% atenderiam
a frota agrícola, "que seria abastecida com B100
(óleo puro), o suprimento restante seria feito com
B5 (5% de mistura), levando em conta que o processamento tenha
80% de rendimento." O GTI também prevê o
uso desse tipo de combustível em motores estacionários,
sobretudo para gerar energia elétrica em regiões
onde não haja iluminação pública.
A
Tecbio calcula que a demanda por diesel fóssil, no
Brasil, esteja por volta de " 37,5 bilhões de
litros, dos quais são importados 5,3 bilhões,
com uma despesa de US$ 1,5 bilhão/ano." Essa gasto,
observa, poderia ser evitado com a fabricação
do combustível vegetal. Miragaya, da Petrobras, compartilha
da opinião, mas questiona a intenção
de iniciar o programa com 5% de adição. Segundo
ele, no atual estágio, a produção vegetal
é insuficiente para fornecer o volume necessário
à mistura. "O ideal é irmos devagar. O
Ministério das Minas e Energia quer começar
com 2% e ir aumentando gradualmente. Depois, 2,75% e por aí,
até chegar aos 5%." Mesmo para o B2, há
risco de a produção não suprir a demanda,
acrescenta.
Alerta,
ainda, sobre a existência de gargalos para operacionalizar
o projeto no campo. Faltam laboratórios para avaliações
e definições dos padrões de qualidade,
construção e instalação de plantas
industriais ou usinas para o processo de fabricação,
além de indagações relacionadas aos meios
de transporte que darão maior agilidade à distribuição.
Para ele, "o melhor seria que o escoamento ocorresse
por ferrovias ou hidrovias. Haveria uma economia de diesel
em escala maior."
Com
relação ao beneficiamento da biomassa, Miragaya
afirma que a Petrobras (que faz testes com mamona, no Rio
Grande do Norte), cogita a construção de usinas
na Bahia, Pernambuco e em Minas Gerais, no Vale do Jequitinhonha.
A empresa, assinala, pretende participar do programa adqurindo
e processando as oleaginosas, inclusive distribuindo ao consumo,
"sem qualquer intenção de atuar como monopólio,
embora esteja sendo empurrada para isso." Frisa que a
companhia "não tem mais monopólio e, certamente,
não o terá com o biodiesel."
Com
relação ao armazenamento, de acordo com o GTI,
não há nada conclusivo. Os estudos sobre o período
adequado de estocagem e a necessidade ou não de aditivos
(anti-oxidantes) para prolongar sua durabilidade, estão
com a sistematização em fase inicial. Porém,
observa que "o potencial de oxidação do
biodiesel pode transformar-se em vantagem no caso de acidentes,
pois sua decomposição mais rápida minimiza
impactos ambientais."
Monocultura
preocupa pequenos
Mesmo
vislumbrando perspectivas favoráveis com a implantação
do programa, integrantes da Fetraf e FAF (entidades da agricultura
familiar vinculadas à CUT), manifestam preocupações
quanto à possibilidade de surgimento da monocultura
e "migração" da produção
alimentar para o biocombustível. Para eles, o "governo
deve dar garantias e criar mecanismos que promovam a produção
descentralizada do combustível e, ainda, impor medidas
que bloqueiem a expansão exacerbada do plantio de apenas
uma cultura." Entendem que o projeto embute um risco
inerente, "que é a terceirização,
através do arrendamento, a exemplo do que aconteceu
com o Proálcool (Programa Nacional do Álcool)
e que isso tem de ser evitado."
O
programa do álcool foi lançado na mesma época
em que ocorria a primeira crise petrolífera. O sucesso
foi palpável. Na época, os veículos a
álcool chegar a 97% da frota, segundo o prof. J.W.Bautista
Vidal, mentor do projeto. Porém, acrescenta, "em
1978, o porta-voz da Trilateral, Henry Kissinger, disse que
a segurança dos Estados Unidos não poderia permitir
um Japão ao sul do equador." Hoje, comenta, o
programa existe, mas está praticamente esvaziado, "foi
derrubado pelo Banco Mundial." Conforme diz, "em
l979, o Banco Central tirou o crédito dos pequenos
produtores, que representavam 60% da cultura da cana-de-açúcar.
Esse segmento precisa de crédito e, sem financiamento,
foi afastado." A partir disso, o Brasil chegou a importar
o produto, "inclusive metanol, um veneno."
Os
agricultores familiares também reivindicam financiamentos
(que deverão ser administrados pelo Ministério
do Desenvolvimento Agrário), subsídio fiscal
e assistência tecnológica, que possibilitem a
integração adequada ao mercado de biodiesel.
Quanto à subvenção, o gerente da Petrobras,
Miragaya, foi enfático ao afirmar que "dificilmente
a soja destinada ao biocombustível será subsidiada."
Os
produtores rurais também se mostraram apreensivos com
a possibilidade de virem a perder o controle sobre a industrialização
das oleaginosas, "até porque o investimento para
extração do óleo é alto."
Essa apreensão tem procedência, pois o segmento
reconhece que tem um grau de articulação incipiente,
mas que "é preciso impedir a concentração
do capital." A preocupação surge diante
da sugestão do GTI que considera "relevante, privilegiar
parcerias público-privadas, envolvendo atividades representativas
dos produtores de matérias-primas, indústrias
de processamento, centros de pesquisa e desenvolvimento, universidades,
fabricantes de veículos e componentes automotivos,
agências reguladoras e representantes dos usuários
finais do biocombustível."
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